Já houve uma época em que se
exercia um terrorismo doméstico com apoio ou pelo menos cumplicidade estatal
estadual, municipal e federal de toda espécie. Criança desobediente virava
potencial vítima do bicho papão, da mula sem cabeça, do boi da cara preta. A
este último concedam perdão para Dorival Caymmi. Dizem que a belíssima canção
Acalanto* ele fez em homenagem à sua filha Nana, a quem ajudava a fazer dormir
de vez em quando. Eu
a cantei muitíssimas vezes ninando as minhas duas filhas. A letra e a melodia
toda são muito lindas e só peca no momento de invocar o ser medonho para a
menina. Se bem que um bebê de colo sequer associa as palavras com imagens. O
que conta para eles é a melodia. Se o cantador que estiver ninando a criança
for muito desafinado, creio que assusta muito mais do que um boi da cara preta
propriamente, que a criança nem sabe o que seja.
Eram as formas de que se dispunha
antigamente, através do mistério e da intimidação para manter as crianças sob
obediência cega. Diante do mistério, se a gente não possui conhecimento ou
defesa, o jeito é enfiar a coragem entre as pernas e ir dormir calado ou
chorando sob as cobertas. Não deixando apagar a luz do quarto, por vias das
dúvidas. Hoje em dia a letra seria diferente por exigência de um movimento de
purificação que ronda a educação dos filhos por ai afora.
Há ainda outros terrorismos e me
prendo aqui às aulas particulares que costumamos arranjar para os filhos que
estão com dificuldade escolar em alguma matéria. Alguns pais normalmente antes
de procurarem uma terapia de casal, de questionar a metodologia da escola, o
temperamento do professor, já imputam aos filhos a culpa pelo “fracasso” e lhe
matriculam em uma aula particular. Desconheço um adulto que foi vítima desse
terror na infância a passou a gostar da matéria em que foi obrigado a fazer
aulas de reforço.
Eu, ex-terrorista doméstico, um
dia dei um jogo eletrônico de Sudoku para a minha filha que já era refém das
aulas de Kumon. A menina abriu o brinquedo com um sorriso mais amarelo que se
pode imaginar, com aquele olhar de subtração e o encostou em um canto para não
me fazer desfeita. Nunca mais brincou com o troço e até hoje tem horror à
matemática. A sensação que tenho do que ela sentiu à época é como se eu desse a
um preso injustamente numa cela um par de algemas prendendo seus braços para
ele ir brincando de aprender a abri-la durante a sua pena.
*ACALANTO
Dorival Caymmi
Todos dormem, a noite também
Só eu velo por você, meu bem
Dorme anjo, o boi pega neném
Lá no céu deixam de cantar
Os anjinhos foram se deitar
Mamãezinha precisa descansar
Dorme anjo, papai vai lhe ninar
Boi, boi, boi
Boi da cara preta
Pega essa menina
Que tem medo de careta
Eu lembro de minha mãe cantando a cantiga do Boi para me fazer dormir especialmente a tarde eu realmente pensava que poderia haver um boi no telhado e as vezes até sonhava!!! rsrs... E esse texto foi tão terno que da até medo de comentar e macular a beleza da poesia!!!
ResponderExcluirAqui se canta boi da cara preta e dorme senão a "cuca" jé vem....
ResponderExcluirMais em tom de brincadeira, pois não acho certo criança ter medo de bicho, infelizmente o único bicho que criança deve temer é o bicho homem, que é capaz de tanta maldade.
Amei o texto, sem mais, grande beijo
huahuahuahuahuahuahuauhahuahuahuaua po Kumon é maldade! Odiava aquele troço. Até hoje tenho um certo receio ao ligar com números rsss
ResponderExcluirCacá esse seu texto me serviu perfeitamente, pois hoje fui ao plantão pedagógico do meu filhão do oitavo ano e pela primeira vez nesses anos todos ele tirou uma nota baixa(5,0) em matemática.
ResponderExcluirFiquei totalmente irritada e disse-lhe exatamente isso, que vai para aula particular de matemática para recuperar, sem falar que o deixamos sem jogo de vídeo game e PC.
Mas eu já entendi que essa notinha baixa é por causa do professor novato de matemática. Percebi que meu filho não afinou.
Na verdade me sinto como se o papel que exerço dentro de casa não tenha valido de nada.
Mas foi muito bom te ler, pois vou rever esse dia de hoje.
Abraços
Xeros
Texto maravilhoso, não acho certo mentir para as crianças, minha mãe nunca me falou sobre bicho papão, papai noel ou coelhinho da pascoa, alguns podem achar que isso tirou a magia da infância, mas na verdade me poupou da decepção de descobrir que estava sendo enganada como aconteceu com uma amiga minha ao descobrir que nada disso existe.
ResponderExcluirCacá, agora com os netos, vejo o quanto as canções infantis são cheias de medo e passagens até impróprias. Vou cantando e mudando a letra, no que posso.
ResponderExcluir"Boi, boi, boi, boi, da cara preta, vem brincar comigo, não tenho medo de careta" rrs E coloco a língua pra fora, essa é a "careta" e eles riem até hoje.
Atirei o pau no gato é uma danada de politicamente incorreta, mas essa não mudei. Canto e depois pergunto: "Nossa, mas que menino levadinho, a gente pode atirar um pau no gatinho?" Eles ficam indignados e respondem que não, "né, vovó?,machuca ele..."
Mas entendi o sentido geral do texto, realmente aprendemos muita coisa que não devemos e ensinamos do mesmo jeito. Com todos os erros, ainda era melhor esse "terror doméstico" do que a total falta de educação e parâmetro para as crianças de hoje.
Boa semana!
Passei por essas fases com meus pais, principalmente meu pai que lia história para meu irmão e eu antes de dormir. Acredito que esses "erros" que os pais cometem de, aula de reforço,castigo por notas baixas não são por mau. Antes eu odiava mais agora entendo que é pro bem, e até aplico no meu irmão mais novo, que trato como se fosse meu filho, pois estive bastante presente na sua criação e aplico algumas prática, eu confesso. Acredito tbm que vai muito da forma como é aplicada, não acreditei que imposição era a melhor opção, principalmente o estudo te que ser prazeroso, meu irmão mais velho sempre de trabalho pra estudar e acredito que foi a imposição da minha mãe que contribuiu. Eu nunca tive problemas sempre gostei de estudar e principalmente de ler, tá ai talvez a explicação da escolha profissional e meu irmão mais novo me segue nessa.
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